Quando se fala em cidade ou suas variações menores, – aldeia, vila, comunidade – somos habituados a evocar cenários estereotipados que correspondem a ruas, carros, construções e, muitas vezes, acabamos esquecendo que sempre podemos nos surpreender com outras formas dotadas de originalidade.
Muito se especula sobre momento exato no qual as cidades foram inventadas, sendo obras abertas, inacabadas e objeto dos mais variados estudos desde então. Há quem pressupõe que sua natureza se deu pela necessidade de proteção, o que fez com que o homem deixasse a vida nômade e se agrupasse em um determinado território a fim de aumentar suas chances de sobrevivência.
Ao tentar defini-las, tais aglomerações podem ser entendidas também como lugares onde se concentram serviços – culturais, de infraestrutura, religiosos – reunindo diferentes atividades. Leonardo Benévolo em seu livro História da Cidade (1980) afirmou que um assentamento é caracterizado pela sobreposição de funções advindas das diferentes realizações de seus habitantes ao longo do tempo, que transformam o ambiente urbano adaptando-o à suas necessidades e interesses.
Nesse sentido, analisando as aglomerações humanas sob um viés mais amplo, pululam diferentes formatos – cartesianos ou tortos, como afirma Leno Souza (2016), que mesmo os campos multidisciplinares do conhecimento não conseguem apreender em uma tentativa vã de categorização e classificação que procura, inclusive, instituir-lhes “personalidades urbanas” como pacata, agitada, violenta, tranquila, entre outras.
Ko Panyi definitivamente não corresponde ao estereotipo de uma aglomeração tal qual imaginamos. Seria um exercício complexo categorizá-la ou classificá-la. Mais fácil seria descrevê-la como uma das cidades invisíveis de Ítalo Calvino, já que, aninhada em uma baía ao sul da Tailândia e sombreada por um enorme rochedo de calcário com aproximadamente 200 metros de altura, suas construções surgem da água apoiadas por estruturas longas e finas como pernas de flamingo, abrigando mais de 360 famílias e um total de 1.680 pessoas.
Sua história inicia no final do século XVIII quando uma lei local limitou a posse de terra unicamente para pessoas de origem tailandesa e fez com que os pescadores malaios da região começassem a construção deste povoado sobre palafitas, aproveitando o mar calmo e fértil da baía. Ao longo do tempo a comunidade se expandiu também em riqueza, principalmente devido ao crescimento do turismo no país o que, por sua vez, tornou possível a compra dos pequenos espaços de terra ao redor do rochedo onde foram construídas as únicas estruturas em terra firme: escola, centro de saúde e a mesquita.
Em Ko Panyi a natureza dita as regras e o homem as interpreta procurando responder às premissas e problemas levantados. Nela, a água – apesar de não ter uma forma própria – é capaz de gerar tensões de projeto como elemento corpóreo que transporta a força da natureza. Tal tensão se dá principalmente devido à vulnerabilidade das estruturas na perigosa condição marítima durante a estação chuvosa que faz também com que seja incentivada a emigração da aldeia.
Sua base estrutural é criada por meio de palafitas com as casas erguidas em madeira e bambu. E, dentre tantos desafios de viver sobre as águas, um dos principais é a superfície sólida extremamente limitada que reflete na falta de espaços comuns e de encontro. Nesse sentido, falar sobre Ko Panyi se faz impossível sem citar o esforço coletivo da comunidade – também documentada por meio deste vídeo – em criar um espaço de lazer e jogos.
Motivado pela Copa do Mundo de 1986, um grupo de crianças decidiu construir uma quadra de esportes flutuante, enfrentando os desafios geográficos que o lugar os impunha. Com madeira, pregos e jangadas de pesca as crianças iniciaram a construção, trabalhando no contraturno após a escola. A quadra, localizada ao lado de um píer, com 16 m x 25 m, se tornou um tesouro nacional apesar de hoje ter sido substituída por uma melhor construída devido à comoção que a história causou.
A exemplo do povo malaio, muitas outras aglomerações foram construídas sobre a água. Modelos mais próximos podem ser vistos no Lago Titicaca, Peru, com o povo pré-inca Uro que vive em 42 ilhas flutuantes feitas de totora, uma espécie de cana nativa que nasce nas águas margens do lago. Ou, mais próximo ainda, nos povoados amazônicos construídos em Manaus, utilizando a madeira Açacu como boia para suas fundações, uma espécie muito espessa e que tem a fundamental característica de não apodrecer na água.
Entretanto, as vilas flutuantes não têm lugar somente no passado e presente, mas também no futuro. Neste artigo publicado no ArchDaily Brasil é apresentada a Oceanix City, de Bjarke Ingels Group. Segundo o texto, “como parte da Nova Agenda Urbana da UN-Habitat, o BIG propôs um projeto para a primeira comunidade flutuante resiliente e sustentável do mundo, feita para acomodar 10.000 pessoas. Oceanix City é uma resposta à previsão de que, em 2050, 90% das maiores cidades do mundo estarão expostas à elevação dos mares, resultando em deslocamento de massa e destruição de casas e infraestrutura. O projeto está ancorado nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, que institui fluxos circulares de alimentos, energia, água e resíduos. A agricultura comunitária está no centro de todas as plataformas, permitindo que os residentes adotem o compartilhamento de cultivos e sistemas de desperdício zero. Todas as comunidades, independentemente do tamanho, priorizarão os materiais de origem local para a construção civil, incluindo o bambu de crescimento rápido que tem seis vezes a resistência à tração do aço, emissão negativa de carbono e pode ser cultivado nos próprios bairros”.
Ko Panyi está muito longe de ser uma utopia futurística, mas, mesmo assim, representa uma forma alternativa de se viver em comunidade, respeitando e entendendo a natureza, à sua maneira. Um exemplo que nos convida a perceber o quanto temos a aprender com outras formas de assentamentos que saem do padrão estereotipado hoje prevalecido. Revisar e reconhecer diferentes formas de aglomerações – com seus ônus e bônus – parece um exercício interessante, principalmente neste momento de incertezas, repleto de desafios de cunho social e ambiental.